setembro 10, 2004

Budapeste


Extracto de Budapeste, de Chico Buarque, o prémio recebido em silêncio:
«Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio. A companhia ofereceu pernoite num hotel do aeroporto, e só de manhã nos informariam que o problema técnico, responsável por aquela escala, fora na verdade uma denúncia anônima de bomba a bordo. No entanto, espiando por alto o telejornal da meia-noite, eu já me intrigara ao reconhecer o avião da companhia alemã parado na pista do aeroporto local. Aumentei o volume, mas a locução era em húngaro, única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita. Apaguei a tevê, no Rio eram sete da noite, boa hora para telefonar para casa; atendeu a secretária eletrônica, não deixei recado, nem faria sentido dizer: oi, querida, sou eu, estou em Budapeste, deu um bode no avião, um beijo. Eu deveria estar com sono, mas não estava, então enchi a banheira, espalhei uns sais de banho na água morna e me distraí um tempo amontoando espumas. Estava nisso quando, zil, tocaram a campainha, eu ainda me lembrava que campainha em turco é zil. Enrolado na toalha, atendi à porta e topei um velho com uniforme do hotel, uma gilete descartável na mão. Tinha errado de porta, e ao me ver emitiu um ô gutural, como o de um surdo-mudo. Voltei ao banho, depois achei esquisito hotel de luxo empregar um surdo-mudo como mensageiro. Mas fiquei com o zil na cabeça, é uma boa palavra, zil, muito melhor que campainha. Eu logo a esqueceria, como esquecera os haicais decorados no Japão, os provérbios árabes, o Otchi Tchiornie que cantava em russo, de cada país eu levo assim uma graça, um suvenir volátil. Tenho esse ouvido infantil que pega e larga as línguas com facilidade, se perseverasse poderia aprender o grego, o coreano, até o vasconço. Mas o húngaro, nunca sonhara aprender.»

Os outros romances de Chico Buarque: Benjamim e Estorvo, publicados no Brasil pela Companhia das Letras; em Portugal pela Dom Quixote. Está ainda publicado, pela Companhia das Letras, Chico Buarque: Letra e Música (Vol. 1), reunião das suas canções.

3 comentários:

Silvia Chueire disse...

Foi esse início que me "fez" ler o livro. Gostei de lê-lo.

eubozeno disse...

Eu não li o romance e não sei, tendo em conta a amostra, se o lerei.
Também acho interessante a palavra "zil" mas jamais a desfavor de "campaínha". Quanto a "haicai"... sinceramente... não obstante estar dicionarizada pelo Houaiss, eu prefiro "Haiku" porque provoca um interessante embaraço em português. Talvez vá ler o romance, se bem que, e pelo que se lê, Buarque a escrever talvez seja como Saramago a cantar. Até talvez vá comprar e ler. Até talvez possa gostar, mas o gostar é algo limitado porque imediato. Não me parece ser um texto que possa ser admirado. Ao menos sei que há sempre Musil à espera.

Bruno Rabin disse...

Sei que comentários do tipo “o-que-deveria-ser-e-não-foi” não são lá muito simpáticos. Mas como sou apenas leitor, acho-me no direito de fazer algo parecido a respeito deste Budapeste. Pareceu-me belo material para um conto. E ponto. Chico fez um romance que lembra Graciliano às avessas: fala muito e diz pouco. E me deixa com a pergunta: como se pode ser tão conciso e tão lacônico ao mesmo tempo? Nada disso diminui o interesse pelo argumento, interessantíssimo. Um abraço.