fevereiro 05, 2005

Adélia Prado



Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Adélia Luzia Prado Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de Dezembro de 1935. A sua poesia está reunida em Poesia Reunida, publicada pela Siciliano.

5 comentários:

herbert farias disse...

Que bom que ela é. Muitas mulheres nao foram. Calaram o talento sob o grilhao das saias. Dos caftens sem pedigree, sem nome e sem tarimba. Enfim, temos Adelia Prado. E comemoremos isso!

Anónimo disse...

Olá!
Não sou expecialista em poesias e poemas mas achei o da Adélia Prado muito bonito. Parabéns por ter o colocado!
Obs.: Achei muito interessante o comentário do Hébert.

Unknown disse...

Gosto muito da Adélia Prado, acho que é das pessoas que melhor poesia escreve em português.

Anónimo disse...

Poesia reunida em "Poesia reunida"? Não achas reunião a mais?

Anónimo disse...

Para melhor entender esse poema da Adélia, há que se relembrar o começo do belíssimo "Poema de Sete Faces", do Drummond, a quem ela responde:

"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."

Voltando à Adélia, o meu preferido, "Ensinamento":

"Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
'Coitado, até essa hora no serviço pesado'.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo."

Parabéns pelo site! Belo trabalho.